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20 palavras para um novo mundo: Conexão

Uma série de palavras se infiltrou em nossa linguagem cotidiana este ano para descrever os novos tempos em que estamos vivendo. Pedimos a quatro grandes escritores – David Szalay, Rosie Millard, Paolo Gallo e Emma Dabiri – que escrevessem sobre algumas delas para nós. O texto de hoje é de Rosie Millard, apresentadora experiente, jornalista e autora. Ela foi correspondente de arte da BBC para adecade, âncora do The Sunday Times, colunista do The Independent e escreveu quatro livros. Ela foi presidente da Hull UK City of Culture em 2017, pela qual foi premiada com um OBE, e agora é presidente do conselho de administração da instituição de caridade BBC Children in Need. Ela escreveu sobre o significado de “Conexão".

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Quando tudo isso começou, nós costumávamos assistir à televisão com uma espécie de assombro. Nós não podíamos acreditar no que estávamos vendo noite após noite. O que é que está acontecendo? Pessoas na China chamando umas às outras de seus prédios. Cidades italianas vivas com música e canções que as pessoas cantavam nas varandas do outro lado da rua. “O que é ‘lockdown'?”, nos perguntávamos, “o que isso significa?” Agora toda essa inocência parece outra era. Todos nós sabemos o que é lockdown. Uma das melhores coisas a respeito disso é que, assim como na China e na Itália, nós estamos abrindo nossas portas e janelas para cantar ou conversar com nossos semelhantes.

Antes da Covid-19, eu acenava para duas pessoas em minha pequena rua no centro de Londres. Não, na verdade, apenas uma. Agora eu estou tratando ao menos dez famílias pelo primeiro nome. Nós nos cuidamos; nós temos as chaves das casas uns dos outros. Nós nos  ajudamos e rimos. Quando meu computador quebrou, pelo menos três pessoas diferentes se ofereceram para consertá-lo e um vizinho me emprestou um carregador. Quando nosso jardim estava fora de controle, o cara da casa ao lado subiu na cerca para cortar os galhos da nossa árvore. Quem diria que, em Londres, durante o lockdown, nós pegaríamos nossos instrumentos e cantaríamos uns para os outros no meio da rua? Mas foi isso que aconteceu e eu não estou sozinha. É assim ao redor de todo o país.

Tudo começou com as "Palmas para os Enfermeiros” semanais, quando as pessoas saíam em suas portas da frente às 20h, todas as quintas, para aplaudir quem estava cuidando do Serviço Nacional de Saúde e outros trabalhadores da linha de frente. Depois foi só uma questão de tempo para alguém promover um encontro semanal com drinks. Nós levávamos copos de plásticos de nossas casas, cervejas e cocktails feitos em grandes jarras de plástico. Eu comecei a aguardar ansiosa pelos eventos regulares de drink às sextas.

Eu me mudei para essa ruazinha de Londres depois do colapso em meu casamento e no início estava preocupada com o que as pessoas poderiam pensar sobre minha situação; mas eu descobri que ninguém sequer ligou. Muito pelo contrário: eles foram sensíveis sobre minha situação, deram boas vindas a mim e meu companheiro, sorriam sempre que meus filhos apareciam e não foram nada além de positivos e amigáveis. Mesmo quando um tablóide nacional achou que seria divertido escrever sobre o fato de que eu estava me divorciando e me mudando para o que eles chamaram de “um ninho de amor alugado”, ninguém ligou. Ninguém se importou, mas do jeito bom.

Um dia, Mário, um de nossos novos amigos, foi à costa para uma viagem de pescaria. Ele pegou mais de 40 grandes peixes. Eu o vi voltando aquela noite, com calor e cansado do dia inteiro no barco. Depois eu o vi indo de porta em porta, dando peixes a todos, inclusive para nós. Aquela noite meu companheiro e eu comemos um delicioso peixe fresco. Foi simples, mas ainda extremamente significativo. A camaradagem que mostramos uns aos outros ao compartilhar drinks e músicas estendendo-se a compartilhar comida. Se em sua ira e disseminação a epidemia que chegou a nós parece quase bíblica, também parecem os gestos de cuidado.